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Reencantar a humanidade – o novo lugar das ciências sociais

“(…) adiar o fim do mundo (…) [e favorecer] o encantamento e o engajamento na possibilidade de construir outros mundos (…)”, Francisco Uribam Xavier de Holanda

Resumo: A racionalidade, se não for totalitária, se não estiver ao serviço da missão imperial, não precisa de censurar pensamentos, estigmatizar discussões, nem de se esconder em torres de marfim. Infelizmente, é a racionalidade totalitária que domina as ciências, nomeadamente impedindo-as de comunicar entre si, dispersando-as em hiper-especialidades, dividindo-as em ideologias sectárias, tudo muito adequado a produzir hierarquias instrumentais para a submissão cognitiva e intelectual à missão imperial (Dores, 2021). A inércia e o seguidismo são confundidos com civilização (Elias, 1990) e com império (Hardt & Negri, 2004). Mas ter-se-ão de encontrar aspectos positivos na civilização para os usar para conter o império dentro de limites aceitáveis.

“O que é necessário (…) é um espírito totalmente diferente”, Perry Anderson

Para o pensamento ocidental hegemónico, a civilização não é concebível sem estar submetida à missão imperial, a uma hierarquização social consolidada em discriminações abusivas capazes de dividir para reinar (Graeber & Wengrow, 2021). É esse muro cognitivo, epistémico, que é preciso denunciar para poder ser reconhecido e, eventualmente, desmantelado. Eis o tema da investigação científica transdisciplinar que é preciso facilitar, organizar, em vez de condenar, obscurecer, reprimir, dissimular. Investigação para a qual todos os conhecimentos, incluindo não científicos, podem e devem ser mobilizados e estudados. Tarefa em torno da qual as ciências sociais se poderão valorizar com vista a oferecer esperança, que é o estado de espírito que pode servir de medida à felicidade.

Aos olhos de Max Weber, o desencantamento do mundo que caracteriza a civilização ocidental acompanha a democratização da racionalidade, i.e., a redução a papel, a duas dimensões, dos conhecimentos estratégicos, dos segredos de estado, dos processos administrativos, dos saberes profissionais. Esse desencantamento com larga tradição imperial anterior instrói as elites nos processos de apropriação privada dos bens comuns – há quem os designe por expropriação, roubo ou acumulação primitiva (Federici, 2019).

A institucionalização da propriedade pressupõe o desencantamento prévio da natureza e da natureza humana. Marginalmente (Dores, 2012), a propriedade é vulnerável à espionagem, às conspirações competitivas, à crítica, às expropriações dos expropriadores. Mas enquanto continuar a ser símbolo de realização pessoal e social, a propriedade continuará a ser motivo de desmotivação, angústia e raiva, insegurança e guerras.  

Tropas a organizar o saque

A unidade entre concorrentes imperiais e ladrões foi forjada nos saques medievais inspirados nas práticas romanas que seguramente não foram as primeiras. Mas o projecto ecuménico de sacar a Terra inteira e a humanidade só dura há meio milénio. Só é possível por haver meios de convencer os povos a servirem a missão imperial livremente, embora haja graves penalizações para quem não alinhe. A produção em emassa de servidão voluntária das vítimas cúmplices da missão imperial é frequentemente designada por modernização. A todos os modernos incumbe a exploração da mesma Terra e dos mesmos povos, na qualidade de trabalhadores.

As ciências emergiram neste ambiente social. As ciências sociais foram desenvolvidas no Ocidente a par da democratização da cidadania e da escolaridade. O universo, com Newton, foi reduzido a um mecanismo automático de relógio. Insuficiente para explicar as condições atmosféricas, a física manteve-se firme mesmo quando se inventou a termodinâmica para dar conta da entropia, o desgaste das máquinas pelo uso, a necessidade de inovar e as substituir por novas máquinas. A cibernética reduziu a vida a justaposição de mecanismos orgânicos substituíveis por máquinas suficientemente inteligentes. O pós-humanismo antecipa a substituição da humanidade por máquinas, as únicas herdeiras da civilização (Harari, 2018). O desânimo é tal que não há energia para denunciar genocídios, corridas armamentistas, organização de guerras. As manobras imperiais parecem inelutáveis.

A ambição revolucionária do positivismo de construir a complementaridade entre as ciências mecânicas, orgânicas e da complexidade – projecto a que Comte chamou sociologia – também parece mera utopia. Cada um no seu laboratório, a maioria dos cientistas e profissionais dedica-se a proteger o seu modo de vida em vez de viver a procura da esperança, de felicidade.

O Adamastor lembra a antiga relação de admiração e respeito perante a natureza. Relação apropriada pelas elites imperiais.

A ilusão de racionalidade da missão imperial de explorar a Terra, em vez de se desfrutar dela, foi longamente elaborada por processos de imposição de poder imperial, o mais referido o Império Romano e a sua sequela, a Igreja romana. A história ocidental se encarregou de a incorporar na civilização, nomeadamente através da ciência, da educação, da profissionalização e dos critérios de mérito que a tornam desejável (Markovits, 2019; Sandel, 2020). Expurgar as práticas racionais das ilusões de racionalidade imperial, nomeadamente da sua racionalidade económica e organizacional, é tarefa hercúlea, mas indispensável, para o que as ciências podem contribuir. O mundo não precisa de ser reencantado. Os humanos tolhidos pela civilização moderna, entretanto globalizada, sim, precisam de esperança e ânimo diferentes dos de servirem a suicidária missão imperial.

As contribuições das ciências sociais podem ser reconhecidas pelas contribuições que dão para estudar natureza humana, estados de espírito, sociedade e outras noções de fundo que devem ser aprofundadas como conceitos centrífugos, conceitos abertos à colaboração cognitiva (Dores, 2021).

Paradoxalmente, é usando os aspectos positivos da civilização, como as ciências centrífugas, a permacultura ou a justiça transformativa (AAVV, 2013),  que será eventualmente possível resgatá-la do totalitarismo endémico. Na era da globalização, a democracia e o estado de direito pareciam estar a vingar de forma irreversível. Não se tomou consciência de que a missão imperial continuou a incluir os mesmos elementos totalitários e imorais – como o espírito nazi-fascista – que suportaram o III Reich. Quando as políticas mentais perdem o norte, quando os seus jogos de dissimulação deixam de funcionar, elites e vítimas-cúmplices recuperam o espírito imperial do Velho Testamento. Derrotado na II Grande Guerra, o nazi-fascismo não cumpriu a sua missão. As vítimas-cúmplices reclamaram, com sucesso, democracia e direitos humanos. Mas continuaram divididas em nações, esqueceram a fraternidade, e testarem concorrencialmente a democracia liberal e a democracia popular. Em ambos os casos, o espírito imperial foi retomado pelas superpotências da Guerra Fria.

A ideia de que o mundo democrático não se mistura com o mundo totalitário é empiricamente falsa. Hannah Arendt fez equivaler o espírito kafkiano próprio da burocracia à banalização do mal nazi-fascista (Joas, 2003). Estado de espírito cuja experiência na presença de hierarquia foi medida por Milgram.

Há que reconhecer que a participação política livre é incompatível com a consecução da missão imperial. Esse reconhecimento foi imposto aos trabalhadores organizados, no final do século XIX. Infelizmente os movimentos dos trabalhadores foram ludibriados quando aceitaram que a fraternidade seria dispensável. Foram traídos pelo seu espírito sacrificial forjado na luta pela sobrevivência e na luta política de baixo para cima. Os trabalhadores foram incapazes de perceber que o que estava, e continua a estar em jogo, é a relação da natureza humana com a natureza, naturezas inseparáveis separadas entre si pela religião, pela missão imperial e também pelas ciências, pela educação, pelas profissões.  

O facto de no século XX a burguesia ter sido conduzida para o lugar socialmente escondido em que já vivia a aristocracia – o lugar a que se referem as teorias da conspiração –, dos seus interesses terem passado a ser representados pela classe dos administradores (Reich, 1991) (uns do estado, outros das empresas, outros dos estados e das empresas) e o cansaço de duas guerras mundiais, desarmou os movimentos dos trabalhadores. Isso foi um bálsamo financeiro e académico para as ciências sociais (Coser, 1956, pp. 27–29), na condição de se disporem a estar ao serviço da missão imperial (Mattei, 2022).

As ciências sociais institucionalizadas colaboram com o estado social (Dores, 2020). São ciências ansiosas por manterem o estatuto académico que lhes foi oferecido pela democracia ocidental. Ironicamente, a alegação é de que o projecto positivista da sociologia como ciência da complexidade, agregadora e dialogante com todos os saberes, é imperialista e, por isso, deve ser moralmente descartado. A sociologia deve, nesse sentido, ser reduzida a uma subdisciplina das ciências sociais (Parsons, 1948) e não deve questionar as condições estruturais da construção epistemológica de que é parte integrante (Merton, 1948, 1968). Mas a sociologia, como todas as subdisciplinas das ciências sociais, nunca foram tão fortes e tiveram tantos praticantes. Tal como à civilização cabe descobrir o melhor que há em si, às ciências sociais cabe participar nesse processo.

INÍCIO: Por um futuro feliz

CONTINUA: Reencantar a vida – aspectos positivos da civilização

Referências:

AAVV. (2013). Transformative justice. http://www.generationfive.org

Coser, L. A. (1956). The Functions of Social Conflict. Free Press.

Dores, A. P. (2012). Espírito Marginal. Editora CRV.

Dores, A. P. (2020). Estado Social Real. RCP edições.

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

Elias, N. (1990). O Processo Civilizacional (Vol I e II) ([1939]). D. Quixote.

Federici, S. (2019). Re-enchanting the world – Feminism and the Politics of the Commons. PM Press.

Graeber, D., & Wengrow, D. (2021). The dawn of everything – a new history of humanity. Farrar, Straus and Giroux.

Harari, Y. N. (2018). Homo Deus; História Breve do Amanhã. 20/20 Editora, Elsinore.

Hardt, M., & Negri, A. (2004). Império ([2000]). Livros do Brasil.

Joas, H. (2003). War and Modernity Studies in the History of Violence in the 20th Century. Polity.

Markovits, D. (2019). The Meritocracy Trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite. Allen Lane & Penguin Books.

Mattei, C. (2022). How Economists Invented Austerity & Paved the Way to Fascism. New Economic Thinking.

Merton, R. K. (1948). Discussion. American Sociological Review, XIII, 164–168.

Merton, R. K. (1968). On Sociological Theories of the Middle Range. In Social Theory and Social Structure (pp. 39–72). Free Press.

Parsons, T. (1948). The Position of Sociological Theory. American Sociological Review, XIII, 158–164. https://www.jstor.org/stable/2087030

Reich, R. B. (1991). O Trabalho das Nações. Quetzal.

Sandel, M. J. (2020). The Tyranny of Merit. Penguin Books.

O nacionalismo dissimula a crise imperial

Para apontar potenciais fontes de felicidade há que reconhecer e apreender a evitar as fontes de depressão social alimentadas por crises imperiais, capitalistas e nacionais, por esta ordem. Os estados nacionais assistem ao recrudescimento de práticas neonazi-fascistas em reacção à nova falência do capitalismo (depois de 1929, em 2008) sem que a democracia tenha cumprido a sua função de apontar alternativas. Mas a estrutura da crise é o processo de transferência, em curso, da sede do império global para Pequim e a derrota do ocidente, de que os EUA se querem ver livres sob a liderança de Trump.

Com o fim da Guerra Fria, o proselitismo da globalização resultou no abandono da União Europeia pelos EUA, traindo a matriz ocidental para se adaptar à matriz oriental da construção de impérios. Alimentados pela fraternidade original, os futuros imaginativos estão dispersos e vigiados por estados sociais reforçados por sistemas digitais cada vez mais poderosos.

Para os herdeiros da parte positiva da civilização ocidental, entendida como a civilização que procura a democracia, o estado de direito e dos direitos humanos, a ciência, é hora de, em vez de se envolverem em guerras fratricidas e derrotadas à partida, valorizarem, sem hipocrisia, a ética revolucionária da liberdade, igualdade e fraternidade entendidas em conjunto, não em rivalidade. A falta de esperança decorre do alheamento da fraternidade e da separação entre liberdade e igualdade, como se fossem opções alternativas, em vez de exigências estratégicas para se viver melhor. As ideologias, secundadas e reforçadas pelas ciências sociais, deprimem a imaginação em nome das hipócritas unidades partidárias em torno de chefes rivais. Imaginação que foi fértil na primeira parte do século XX, nos anos sessenta, é hoje torturada por ameaças sadomasoquistas oferecidas por movimentos neonazi-fascistas.

O império é um modo de organização social inventado há milhares de anos. O capitalismo surgiu há um quarto de milénio, em Inglaterra. Atraiu a si a sede imperial, originalmente romana e depois ibérico-holandesa. Tomou por natural as hierarquias e as discriminações sociais, reforçando-as, industrializando-as, banalizando-as, impondo-as. Os estados-nação foram os instrumentos dessa versão adulterada de democracia – originalmente significava a escolha aleatória de cidadãos para cargos de direcção política temporários das instituições. A democracia foi adulterada para assegurar ser favorável à missão imperial, de que os estados dependiam e dependem. Essa rigidez impede os estados de abolir o capitalismo e a missão imperial suicidária.

Os estados-nação foram inventados para sediar impérios capazes de localizar a consecução da missão imperial ocidental, numa perspectiva universalista. Com o fim da Guerra Fria, a globalização tornou evidente a contradição entre os estados-nação e a mobilização de toda a humanidade para a missão imperial. As desigualdades entre metrópoles e colónias foram internalizadas pelos países, mesmo os que continuavam a crescer economicamente, tornando intoleráveis os imigrantes indispensáveis ao capitalismo.

A anunciada liberdade de circulação de pessoas foi abolida e substituída por muros ineficazes. A crise nacional tornou-se política e depois imperial. As esquerdas querem resistir para voltar às promessas falhadas do estado social (Dores, 2020). O aparecimento dos partidos neonazi-fascistas representa o desespero dos eleitores, de direita e de esquerda, que reconhecem estarem o império, o capitalismo e a nação enganados no caminho feito. Só lhes ocorre e é oferecido retornar a um passado imaginariamente glorioso, estado-social, autoritarismo, ou até D. Sebastião, tipo Gouveia e Melo à presidência.

Para os mais renitentes em relativizar a economia, deve perguntar-se porque é que a existência de condições objectivas capazes de manter as pessoas descansadas com o dia seguinte, terão abrigo e alimentação suficientes, porque é que em tais condições se reprodução e recria política e socialmente a pobreza, a fome e a miséria? Porque é que em vez de se organizar a logística humanitária tecnicamente possível de instalar, como reclamaram os diferentes movimentos AID globais, essas tecnologias são usadas para fazer a guerra, mas não para erradicar a fome? Porque é que a falência do capitalismo produtivo no início do século XX, e a falência do capitalismo financeiro no início do século XXI, não resultam sequer na intenção de abolir o capitalismo?

Unido em torno da sua missão imperial, o império que conduz o capitalismo para a servir, seduz e força a cumplicidade das suas vítimas, as nações e os trabalhadores, que temem pela vida se não colaborarem. Temor alimentado por plurifacetadas políticas neoliberais de medo.

Fraternidades revolucionárias elitistas

A Revolução Francesa, a que legitimou politicamente o capitalismo a que a burguesia ansiosamente aspirava, referiu-se a si mesma convencendo-se que tinha abolido a aristocracia – e com ela o seu império de inspiração romana. O seu instrumento político fora a Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Um quarto de milénio depois, é evidente que a Guerra Fria destroçou tal instrumento, nomeadamente descosendo liberdade e igualdade e alienando a fraternidade. Fraternidade incompatível com a promoção político-social da miséria, com as guerras e com os abusos da exploração da Terra, como os genocídios, a extinção das espécies e o aquecimento global realizados para concretizar a missão imperial. Missão imperial que persiste, apesar da prosápia moderna, incluindo a revolucionária.

A instrumentalização do capitalismo pela missão imperial conduzida superiormente depende da aceitação das nações e dos trabalhadores dos sacrifícios humanos próprios do trabalho capitalista. A necessidade de expansão do capitalismo transformou os escravos em assalariados e toda a humanidade em trabalhadores. A escala de exploração da Terra cresceu exponencialmente e é materialmente impossível continuar por muito mais tempo. Porém, as sociedades divididas em produtores-consumidores individualizados estão educadas, epistémica e identitariamente programadas, para servir a missão imperial. Terão de ser as elites a projectar o processo de abolição do capitalismo? Quem está em melhores condições para o fazer, à sua maneira, é o Partido Comunista Chinês, guia hegemónico do país comunista que adoptou e salvou o capitalismo no fim do século XX e, seguramente não por acaso, é herdeiro do império mais sólido da Terra.

É espectável o retorno à normalidade milenar da hegemonia mundial da China, interrompida por meio milénio de história que agora anuncia o seu fim (Morris, 2013). O aburguesamento e o envelhecimento das sociedades europeias que fabricaram o capitalismo e os estados-nação e os projectaram por todo o mundo, em particular nos EUA, é o resultado do olvido, chamemos-lhe assim, da promessa revolucionária de criar condições para a vigência da fraternidade universal. Olvido que permitiu a rivalidade dos critérios de liberdade e igualdade; liberdade aplicada à economia e a um grupo selecto de empreendedores; igualdade aplicada a tropas/trabalhadores/cidadãos ao serviço de elites meritocráticas que replicam os privilégios de casta típicos das aristocracias caídas teoricamente em desuso, mas firmemente ao volante da missão imperial, no topo das instituições e das organizações.

INÍCIO: Por um futuro feliz

CONTINUA: Reencantar a humanidade – o novo lugar das ciências sociais

Referências:

Dores, A. P. (2020). Estado Social Real. RCP edições.

Morris, I. (2013). O Domínio do Ocidente. Bertrand.

Por um futuro feliz

Com o fim da Guerra Fria, o proselitismo concorrencial entre o capitalismo em torno da civilização do automóvel e do comunismo soviético em tornos da civilização da indústria pesada foi substituído pela vitória do nacionalismo globalizado dos EUA, interpretado pela União Europeia como proselitismo da democracia, dos direitos humanos e do estado de direito sem fronteiras. Com a eleição de Trump, os EUA vieram dizer que a interpretação politicamente correcta da União Europeia não convence nem o resto do mundo (como a Rússia e a China), nem os novos dirigentes norte-americanos finalmente livres da tutela cultural europeia.

Karl Marx descreveu a burguesia como uma classe de expropriadores que aos trabalhadores caberia expropriar. Uma outra faceta da burguesia bem conhecida é a sua capacidade de trair a palavra dada, como é imputado aos advogados, à dissimulação da opinião para agradar a financiadores e clientes, aos abusos de poder contra trabalhadores e outros aliados quando perde qualquer hipótese de continuar narrativas que justificam hipocritamente os privilégios de que beneficia. A história mostrou que da expropriação da burguesia não resulta a “verdade revolucionária”, para usar a expressão famosa de Lenin. É preciso, além da expropriação, aprender a denunciar sistematicamente o espírito de banalização da traição próprio da burguesia, bem notório nas promessas eleitorais e constitucionais incumpridas pelos governos e pelos estados, pela sistemática traição dos tribunais à justiça, e reduzi-lo de modo a abrir espaço à sinceridade incondicional que cimenta a fraternidade original, de que são exemplos os processos de diálogo, verdade e reconciliação.    

O projecto soviético demorou 70 anos a revelar-se um falso progresso. A globalização neoliberal iniciada nos anos 80 apresentou o conservadorismo como progressista e, acossada pelas suas contradições, tornou-se belicista em 2003 e faliu em 2007. Sem alternativas, revelando a falsa democracia que era objecto de proselitismo ocidental, a globalização arrastou-se por mais de uma década. Atirou dinheiro aos problemas, como a pandemia COVID-19 e à guerra da Ucrânia, como fez sistematicamente em relação à Palestina, forma de enriquecer prevaricadores e empobrecer e matar trabalhadores. Nestas poucas décadas que revelaram o desastre que são os projectos imperiais, nomeadamente e dramaticamente no aspecto ambiental, as esperanças de assimilação do resto do mundo à civilização ocidental revelou ser também um processo de transferência de poder para uma velha-nova sede imperial planetária: a China (Morris, 2013).

Do mesmo modo que o comunismo começa a ser construído no seio dos movimentos dos trabalhadores, no século XIX, e é depois institucionalizado com a revolução soviética, assim o capitalismo avançado, a civilização do automóvel, começa a ser imaginado entre guerras, no seio de alianças entre liberais e nazi-fascistas, e é institucionalizado no pós-guerra pela aliança entre liberais e comunistas, o estado social. A globalização é uma reacção à Guerra Fria, tendo sido imaginada por Nixon e Mao Zedong, nos anos 70. Foi institucionalizada com a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (2011) depois de quinze anos de namoro com o neoliberalismo, entretanto já falido.

Do mesmo modo que, nos anos 80, a direita neoliberal, perante a inépcia das esquerdas, tomou em mãos a herança progressista que animava as esperanças das pessoas, a República Popular da China tomou em mãos a globalização e a defesa do direito internacional quando já era evidente a falência do sistema financeiro ocidental e a hipocrisia política das ideologias de direitos humanos ocidentais aos olhos do mundo. A partir de 2010, na ausência das alternativas políticas que a democracia deveria ser capaz de fornecer, o neoliberalismo socorreu-se do neonazi-fascismo – como ocorrera entre guerras – para manter no poder as elites falhadas, mas sem concorrência, punindo com austeridade e sentimentos de culpa os povos ocidentais envelhecidos e desesperançados pelo falhanço dos proselitismos e da globalização unipolar.

Bem entendido, as sociedades produzem sempre alternativas de desenvolvimento que, havendo democracia de facto, e não meramente retórica, poderiam enriquecer e animar a vida das pessoas interessadas em viver de outras maneiras. Essas alternativas decorrem das dificuldades existenciais experimentadas (genericamente designadas na política por preocupação com a vida dos pobres) que produzem sempre estados de espírito de fraternidade. Esses estados de espírito fraternais podem ser e são limitados e contrariados pelas elites instigando racionalmente discriminações sociais, dividir para reinar, de que os neonazi-fascistas são a expressão política mais evidente. Eles reclamam o direito de estigmatizar como que fosse liberdade. Uma liberdade que desenha a igualdade e a fraternidade. Coisa que os liberais não desenham.

A democracia interessada em promover alternativas aos actuais rumos liberais-fascistas das sociedades, dos poderes e das civilizações, trata de estimular a institucionalização das práticas fraternais e protegê-las das discriminações purificadoras de que são necessariamente alvos.

A democracia ocidental capturada pelos privilégios dos sistemas partidários foi o modo como os movimentos antitotalitários se institucionalizaram. Com o fim da Guerra Fria, serviu de modelo para o proselitismo ocidental de base imperial. Com a belicosidade imperial justificada pela superioridade da interpretação ocidental dos direitos humanos e dos tratados internacionais, a par da revelação da falência da ciência económica financeira incapaz de gerir o sistema financeiro internacional por si criado, a esperança encarnada pelo projecto europeu desvaneceu-se. A União Europeia luta agora pela sua sobrevivência, depois do recuo do seu protector norte-americano interessado no seu desmantelamento e na separação estratégica entre a Rússia e a China. Aposta todas as fichas na economia de guerra e na militarização das sociedades.

Os movimentos abolicionistas do totalitarismo, como os da escravatura, do patriarcalismo, do clericalismo, do capitalismo, do colonialismo, da guerra, têm sido sistematicamente recuperados a favor dos seus adversários, os exploradores do trabalho extractivista da natureza. O que foi institucionalizado, em vez da democracia, foi o financiamento de ONGs especializadas, reguladas por estados que se opõem à consecução de políticas alternativas. As ONGs denunciam essa falta de vontade dos estados e estes financiam-nas na condição de se manterem longe do poder político e capazes de neutralizar movimentos sociais, como os ecologistas ou os da Primavera Árabe cujas energias foram desbaratas por partidos como os Verdes ou o Syriza ou Podemos.

O financiamento e organização das ONGs é concorrencial e sistematicamente interrompido de modo a frustrar qualquer possibilidade de institucionalização efectiva das experiências mobilizadoras e úteis. Para se viver de dirigir ONGs, a primeira condição é ser capaz de abandonar os sucessos e recomeçar de novo em função dos requisitos estatais sempre em actualização. Assim, qualquer processo emancipatório que possa ser esperançoso, por exemplo, para integrar marginais na vida da cidadania, é interrompido sem ser possível verificar, confirmar, se a esperança é justificada ou se se trata apenas de uma ilusão.

Os futuros imaginativos financiados pelos estados ao serviço da missão imperial são divididos e conduzidos profissionalmente ao serviço supletivo dos estados, que nelas delegam funções sociais que o estado social assumiu e não quer cumprir.

Os futuros imaginativos são alimentados pela fraternidade original e unem-se teoricamente contra as discriminações, sem haver condições de facto de sequer denunciar, quanto mais abolir a reprodução de desigualdades pelos estados. O que é preciso encontrar, na prática, são os espaços de liberdade capazes de reconhecer a fraternidade original, valorizá-la e alimentá-la numa perspectiva centrífuga, de fuga à centralidade do espírito imperial de reduzir a natureza e a humanidade desencantadas a objectos manipuláveis tecno-cientificamente, partidariamente, imperialmente.  

CONTINUA: Uma história do progressismo e a Multicrise do império

Referência:

Morris, I. (2013). O Domínio do Ocidente. Bertrand.

Registo Nadadouro

Ao registo da minha agradável participação no terceiro encontro do Nadadouro (o nome é o de uma freguesia próxima de Foz do Arelho), junto a proposta de associar os Encontros do Nadadouro a uma comunidade de aprendizagem.

Por comunidade de aprendizagem entendo uma infra-estrutura que oferece um tutor e uma panóplia de especialistas a cada estudante. Este, para beneficiar dessa infra-estrutura, deve ter projectos próprios de que seja capaz de assumir as responsabilidades de levar para a frente em prazos de tempo definidos (podem ser meses ou anos).

Pessoalmente, preciso de um tutor que se disponha a saber quem sou e que projectos tenho para a vida. Me ajude a definir tarefas e prazos e a procurar especialistas que me possam ajudar a clarificar os caminhos que quero percorrer. Por outro lado, estou disposto a servir de tutor a quem quiser ser estudante da comunidade de aprendizagem a criar em anexo aos encontros do Nadadouro. Também sou um especialista em ciências sociais que pode ser mobilizado para discutir projectos com estudantes.

Para registo fica uma versão escrita daquilo que lá disse, em duas partes. Primeira parte: por muito que nos procuremos e consigamos proteger das consequências da missão imperial arbitrariamente conduzida por elites, há alturas em que não se pode escapar das desgraças associadas. Que o digam os sudaneses, os congoleses, os ucranianos, os palestinianos, os israelitas, os sírios, e, de facto, todos os povos do mundo. As classes médias-altas (como nós somos, os que se reuniram, assim classificáveis pelo menos por via do capital cultural de que somos portadores) vão começar a sofrer directamente também as consequências da consecução da missão imperial. Segunda parte: até nós, tão protegidos dos desmandos organizados pelas elites e seus colaboradores mais próximos, incluindo nós mesmos, ainda que prefiramos iludir-nos a esse respeito para nossa desresponsabilização e relativa tranquilidade de espírito, somos sensíveis à e podemos beneficiar da fraternidade original, fonte de esperança universal.  

Primeira parte:

A corrida heróica das elites ocidentais para a III Grande Guerra, cujos filhos só voluntariamente participarão nela, decorre da falência do sistema de acumulação. Como sempre acontece nessas circunstâncias, as elites culpam os povos do que está a acontecer. Os povos, eles mesmos, enquadrados em estados-nação, culpabilizam se e colaboram com as “suas” elites contra as elites dos “outros”: a) foram educados para isso, b) estão cheios de dívidas para sobreviverem (os frugais) ou para consumirem  (os viciados), c) em tempo de paz, são eventualmente ameaçados com o inferno, como aconteceu de forma ampla no extraordinário período da guerra à COVID-19, e acontece de forma mais sistemática e socialmente selectiva com as prisões para as populações estigmatizadas e para os adversários políticos, d) mais recentemente, assistimos à soltura neonazi-fascista de desejos de inimigos e de guerras na política, construídos a partir dos quartéis, das esquadras, das prisões – esta é a face nacional dos abusos organizados pelos estados que, a nível internacional, são as institucionalizações das finanças e da guerra.

Há especificidades históricas singulares na vida de todos e cada um, e, portanto, o momento que se vive hoje é também singular. Mas há registos muito antigos de ocasiões em que as pessoas sentiram o mesmo que hoje se sente:

“Nas alturas em que o reino do humano me parece mais condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar para outro espaço. Não estou a falar de fugas para o sonho ou para o irracional. Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra óptica, e outros métodos de conhecimento e análise”. Italo Calvino

Aqui está uma receita que podemos e devemos seguir: estamos a pensar mal e, se queremos começar a sentir coisas melhores e usar a vida para florescer, expressão feliz usada pelos anglo-saxónicos, devemos reconhecer sem dramas ou moralismos a) que precisamos entender como e porque estamos a pensar mal; b) dedicarmo-nos a desabituarmo-nos de pensar como pensamos e aprender a pensar de outro modo.

Segunda parte:

Ao preparar a exposição de hipóteses de resposta a saber como e porque pensamos e agimos mal e como podemos aprender a pensar e a agir melhor, pensei em duas ideias: a nossa civilização é brutal, no sentido de bruta e violenta, e a falta da fraternidade no léxico político desenvolvido na Guerra Fria esconde-a atrás da igualdade, dos ideários comunistas inspirados na esperança vivida nos meios operários.

A Inteligência Artificial (IA) ofereceu-me a confirmação de que ambas as ideias vão contra o pensamento dominante e, portanto, podem ser portas de entrada para novas maneiras de pensar.

O corrector gramatical do word sinalizou a palavra brutal para sugerir que fosse substituída pela palavra fantástico. A IA parece estar programada para convidar os escritores a não associarem expressões de conotação negativa à palavra civilização. Para já, ainda não é proibido escrever textos contra os critérios da IA. Mas tudo pode mudar (e está a mudar) rapidamente com o crédito social ou com políticas de censura fascizantes alegadamente contra o politicamente correcto que já estão em prática na China e nos EUA.

Para preparar uma sequência de cartazes para denunciar a dissimulação da fraternidade pela igualdade (tipicamente sintetizada na ideia de que é preciso dedicarmo-nos a unirmo-nos aos partidos políticos igualitários porque, mesmo quando são dominados por machistas autoritários, quando tiverem realizado a sociedade prometida tudo se tornará num paraíso, incluindo o fim das lutas de classes e da violência doméstica) a IA gerou uma sequência de cartazes a partir de um texto que eu lhe forneci (texto sob o título Fraternidade original– certeza e esperança citado abaixo). O que recebi foi um conjunto de cartazes devidamente seriados a explicar com algum detalhe argumentos que eu suscitei, mas não precisei de escrever, porque a IA adivinhou. Porém, a mensagem principal, a ideia de que é preciso resgatar a fraternidade da protecção sufocante da igualdade e impô-la tanto aos partidários da liberdade, da democracia-cristã e do nazi-fascismo, foi corrigida para o seu inverso: que a igualdade bem-sucedida garantiria a fraternidade.

Não é preciso imaginar que a IA vai ser usada de um modo totalitário para vigiar e corrigir as nossas vidas individualmente, para agravar os riscos de desumanização que já caracteriza a nossa civilização. A IA vai ser usada para ensinar cada um dos seres humanos a forma correcta de escrever e de pensar, de acordo com a interpretações dominantes do cânon, incluindo o cânon crítico (como o usado pelos igualitários). Mas pode ser usada de outras formas, como explica Cathy O´Neil (2016) Weapons of Math Destruction.

Em resposta ao convite que recebi dos Encontros de Nadadouro produzi uma curta promessa de esperança que apresentei e esboços de desenvolvimento de um argumentário de renovação da esperança social que fui e continuarei a registar nos blogs  Libertação do Império e O que é a sociologia?  

Fraternidade original– certeza e esperança

A fraternidade original foi distorcida e recuperada pelo império. Este desenvolveu o liberalismo no século XIX e a democracia cristã, no pós-guerra. A democratização do liberalismo que se deu sob o império norte-americano correspondeu à submissão da fraternidade original pelo nacionalismo e pela Guerra Fria. A liberdade passou a guerrear a igualdade, ambas enterrando a fraternidade. Com a rendição da igualdade à liberdade, o neoliberalismo fez da fraternidade o politicamente correcto. Foi a crítica fraternal que desorientou moralmente o neoliberalismo: como um filho único mimado a quem os brinquedos deixaram de funcionar, o neoliberalismo tornou-se fascista, como já acontecera com liberalismo.

Cartazes já corrigidos depois de produzidos pela IA.

Argumentos

  1.  A nossa civilização é brutal e projecta essa brutalidade na selvajaria alheia: FRATERNIDADE E SACRIFÍCIOS – ELITES E FILHOS-DA-MÃE
  2. A escola é problema central que induz a brutalidade da nossa civilização: Na escola aprende-se a estar sentado, para imitar os poderosos sentados nos respectivos tronos, e a criar obediência e doenças nas pernas e na coluna em massa.  A ciência na escola é reduzida à CIÊNCIA CENTRÍPETA. A CIÊNCIA CENTRÍFUGA tornou-se elitista.
  3. À direita, por que tanta gente está empenhada em divulgar a ideia de que entre o neonazi-fascismo e o comunismo não há diferença? Talvez por a fraternidade original ter deixado de estar presente na mente das pessoas, devido à sua educação escolar e profissional, e a tríade liberdade-igualdade-fraternidade ter perdido o seu sentido revolucionário.
  4. À esquerda, entre a liberdade e a fraternidade, porque escolher a igualdade? Talvez por ter adoptado a missão imperial, a competição pela exploração da Terra.

Outros desenvolvimentos

  1. Limites do abolicionismo espontâneo
  2. Traição
  3. Por um presente com um futuro feliz

Multicrise do império

A crise de civilização que se vive neste início de século XXI inclui uma crise da oposição, crise da capacidade de reagir às adversidades. Um século atrás, as guerras mundiais, apesar da carnificina, não abafaram a esperança no surgimento de sociedades diferentes, melhores. Hoje a falta de esperança deprime a imaginação. Imaginação que foi fértil nos anos sessenta e que hoje é torturada por ameaças sadomasoquistas oferecidas por movimentos neonazi-fascistas.

Marx explicou como o funcionamento do capitalismo. A nossa civilização recentemente globalizada vive de organizar e gerir crises económicas com que chantageia os trabalhadores a trabalharem sem saberem para quê, em troco da sua sobrevivência. Conduzida pela economia política, a crítica marxista não compreendeu o papel político e epistémico da dissimulação do império (Brown, 2009; Federici, 2019; Frank & Gills, 1993). Ausência que explica porque os movimentos dos trabalhadores, assim como os movimentos sociais neles inspirados, como os identitários, acabam frequentemente traídos pelos seus dirigentes. Os movimentos abolicionistas da escravatura, do patriarcalismo, do clericalismo, do totalitarismo, do capitalismo, do colonialismo, têm sido sistematicamente recuperados a favor dos seus adversários, os exploradores do trabalho extractivista da natureza. Os dirigentes insurreccionais que têm sucesso acabam por se render à missão imperial e, portanto, usar os instrumentos de discriminação, organização e alienação já testados pela história.

Como descreve o panóptico (Bentham et al., 2000), cada um de nós está organizado em sua cela individual imaginária a tentar descobrir quais sejam os desejos dos seus sequestradores/educadores/empregadores. Temos apenas por referências as fugazes e misteriosas aparições dos vigilantes/avaliadores/punidores. Este mecanismo social afinado por séculos de experiências (Foucault, 1994, pp. 403, Tomo III), a começar na sua vertente militar, permite mobilizar as pessoas para missões sem que estas façam perguntas sobre o que estão a fazer: é proibido ou fortemente desaconselhado. Essa é a organização de base prévia por detrás da determinação de acumular riquezas que orienta o capitalismo: a acumulação de força-de-trabalho livre.

Marx dedicou a sua vida a revelar que o capitalismo dissimula a exploração da força de trabalho. Não foi tão claro a respeito do império, do modo como as classes dominantes se unem, apesar da concorrência, em torno de uma missão de que podem nem sequer saber qual seja o alcance: a exploração da Terra para recolher a graça divina que alegadamente lhes foi confiada por Deus e demonstrada pela respectiva capacidade de acumulação de riqueza (Weber, 2005). Aquilo que actualmente se chama empreendedorismo.

O império é muito antigo

O marxismo criou o conceito de imperialismo para designar o controlo do capital financeiro sobre o capital produtivo (Hudson, 2022; Lenine, 2000), mantendo o império, o mecanismo de condução da missão imperial, fora do alcance cognitivo dos cientistas sociais. Suscita teorias da conspiração, como a maldade dos dirigentes políticos e dos capitalistas, reforça teorias teológicas, como as que separam os mundos do trabalho do mundo da liberdade, alimenta teorias económicas, as que imaginam que as organizações são dirigidas pela razão tecnocrática e não pela arbitrariedade soberana, é insensível à história ao inverter a causalidade entre império (o mais velho) e o capitalismo (o mais novo que passa por pai do mais velho). Para o marxismo, aquilo que é favorável às posições políticas das suas organizações é comprovadamente científico e libertador, materialista e dialéctico. A proposta de reconhecimento da existência de estados de espírito de fundo, como o espírito imperial, é rejeitada sem discussão por ser idealista (Schofield, 2018).  

A multicrise, cada vez mais palpável depois do fim da Guerra Fria, refere-se à sensação de desconforto gerada pela falência geral da viabilidade das teorias científicas e das razões alegadas socialmente para justificar a organização social do trabalho. Vive-se uma coincidência histórica de crises ambientais, produtivas (de investimento), financeiras (especulativas), cognitivas, epistémicas (nomeadamente após a disponibilização revolucionária de tecnologias de registo e comunicação electrónicas), de saúde (incluindo saúde mental e a manipulação genética), belicistas, políticas, todas a suscitar necessidade de transformações sociais a que as sociedades não dão sinais de poder corresponder. Embora objectivamente seja preciso reagir, a falência geral da razão científica (Dores, 2021) capaz de orientar racionalmente a acção coexiste com a depressão imobilista que domina, de momento, as sociedades ocidentais (Alberoni, 1989).

Um nó górdio prático e mental que inibe imaginar e acreditar num futuro feliz é a incompreensão generalizada sobre o que fazer do capitalismo se ele já foi abolido, no século XX, e retornou em força, no final do século, enquanto o socialismo abriu falência. Esta infeliz circunstância decorre, em parte, por as escolas e universidades ensinarem a acreditar nas teorias dominantes, profissionalizantes, e a desconfiar das evidências que apenas caberia aos dirigentes apreciar, confirmar e certificar.

As escolas formam cidadãos e trabalhadores consumidores hiperespecializados, dedicados a criar estilos de vida imaginariamente individualizados, alheados das realidades sociais e ambientais, membros da chamada classe média envergonhados das suas origens e submissos em relação aos seus dirigentes. Os movimentos emancipatórios do capitalismo, toldados pela economia que entendem ser uma ciência (o que não é o caso), não reconhecem o império. Não reconhecem a profusa produção de espírito imperial entre os trabalhadores como a força social que instrumentalizou e globalizou o capital, e não o inverso. Focados na economia que reduz as realidades à riqueza, capitalistas e opositores ao capitalismo concordam em ignorar a condição necessária para a existência do capitalismo, a acumulação de trabalhadores livres – desempregados (Federici, 2019).

A separação entre as disciplinas de economia (riqueza) e sociologia (trabalhadores livres) reforça, revela e reproduz a dissimulação da produção social de filhos-da-mãe que estão na base das hierarquias que permitem organizar o capitalismo. A acumulação primitiva continua a ser hoje a base de sustentação das sociedades capitalistas e é produzida cada vez mais abundantemente. Ao contrário do que divulga a propaganda, a dominação, as chantagens mafiosas, os roubos, a violência abusiva, não tendem a diminuir, mas antes a aumentar. Quanto mais não seja porque há muito gente a servir de filhos-da-mãe. Mas em vez de ser denunciada como uma imoralidade intolerável, a acumulação primitiva é apresentada pela sociologia como um defeito corrigível por intervenções profissionais devidamente qualificadas (Coser, 1956, p. 29).

O império é um modo de organização social inventado há milhares de anos. O capitalismo surgiu há um quarto de milénio, em Inglaterra, que com ele chamou a si a sede imperial originalmente sediada mais a sul da Europa. Primeiro os soldados, depois os assalariados e finalmente os trabalhadores-cidadãos, incorporaram o espírito imperial que lhes faz imaginar as hierarquias sociais e as discriminações associadas como eternas, naturais, inelutáveis (Graeber & Wengrow, 2021; Silva, 2003).

INÍCIO: Por um futuro feliz

CONTINUA: O nacionalismo dissimula a crise imperial

Referências:

Alberoni, F. (1989). Génese. Bertrand.

Bentham, J., Miller, J.-A., Perrot, M., & Werrett, S. (2000). O Panóptico (T. Tadeu, Ed.; 2a). Autêntica.

Brown, M. (2009). Free enterprise and the economics of slavery. Real-World Economics Review, 52.

Coser, L. A. (1956). The Functions of Social Conflict. Free Press.

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

Federici, S. (2019). Re-enchanting the world – Feminism and the Politics of the Commons. PM Press.

Foucault, M. (1994). Dits et Écrits 1954 – 1988. Gallimard.

Frank, A. G., & Gills, B. K. (1993). The World System – five hundred years or five thousand? Routledge.

Graeber, D., & Wengrow, D. (2021). The dawn of everything – a new history of humanity. Farrar, Straus and Giroux.

Hudson, M. (2022). The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism. ISLET—Verlag.

Lenine, V. I. (2000). O Imperialismo – Fase Superior do Capitalismo ([1916]). Edições Avante.

Schofield, J. (2018). The Real Philosophy of Science. Smashwords.

Silva, J. C. G. da. (2003). O Discurso Contra Si Próprio. Assírio e Alvim.

Weber, M. (2005). Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Routledge.

Uma história do progressismo

No século XIX, a luta de classes confrontou as políticas de exploração casuística da burguesia. A unidade desta classe de dominantes concorrentes entre si assentou, e assenta, na missão imperial de exploração da Terra. Ao tempo, ainda havia muita terra para explorar. Marx usou a economia para promover a esperança progressista nas camadas populares, em especial os trabalhadores. O que aos luddistas parecia um abuso, uma desconsideração, para Marx era um primeiro passo necessário para uma sociedade sem classes que não chegaria sem dialéctica e luta.

Com o fim do capitalismo liberal e as duas Guerras Mundiais, o progressismo tornou-se política dominante, fundamento do estado social. A bem ou a mal, através da iniciativa privada ou pública, o keynesianismo comprometia-se com o progresso sob a forma de crescimento da economia. Numa primeira fase, esta política de cooperação política progressista entre as classes integrou os trabalhadores na cidadania. Na segunda fase, a fase neoliberal, a ideia era libertar a economia do estado, a iniciativa privada da burocracia, para uma sociedade de tipo anarco-capitalista que poderia realizar o progresso primeiro do que o comunismo.

A desintegração paulatina da soberania dos estados projectada para abrir espaço ao progresso das iniciativas privadas foi feita a favor de instâncias internacionais encarregues de intensificar a missão imperial. Porque os progressos comunista e neoliberal desiludiram, encontramo-nos outra vez numa situação emocionalmente sadomasoquista semelhante à vivida entre guerras (Collins, 2013). Entre guerras, a propensão para a autoflagelação levou os camisas negras a provocar a guerra civil contra inimigos imaginários, os bodes expiatórios que iam aparecendo. Toda a Europa os acompanhou. Hoje, com o fracasso da globalização, é a Europa a acompanhar o espírito neo-nazi-fascista que o terceiro mundo adoptou, à sua maneira, para combater o império juntando-se à sua missão de intensificação da exploração da Terra.

Nos anos sessenta, a recém-criada juventude viveu o espírito revolucionário que projectou no ano 2000 uma sociedade tecnologicamente avançada em que a economia e a sociedade seriam de tal modo tecno-cientificamente reguladas que as famílias poderiam viver sem preocupações de sobrevivência e de política (Marcuse, 1991). Na prática, foi criada uma classe média-alta formada por pessoas com cursos superiores e profissões bem pagas que vivem protegidas de desastres naturais, da repressão e das guerras. Dado o nível dos seus rendimentos, esta classe está a salvo das decisões orçamentais dos governos.

Nos anos oitenta, a direita política, antes conservadora, converteu-se ao progresso. Apelaram ao espírito optimista de quem só olha para cima na escada social. Inventaram a ideia de ascensor social, como se as hierarquias fossem espontâneas e inelutáveis. Culparam de pessimistas e incompetentes os que olham para baixo, deixando que as pessoas se calem perante os tecnocratas que asseguram cuidar delas e afastar a política do horizonte. Tratadas de modo semelhante ao lixo produzido pela industrialização, a generalidade das pessoas esforça-se para merecer os favores dos ascensores sociais ou, ao menos, dos empregos disponíveis. O fim da história (Fukuyama, 1999) suscitado na imaginação da classe média alta pela vitória do progressismo capitalista sobre o progressismo comunista, todos os problemas, mesmo os económicos e sociais, seriam processados por sistemas tecnológicos que, mais tarde ou mais cedo, os resolveriam. Ou não.

Diferença entre a vida e a morte, neste caso na Palestina

A globalização que conquistou rapidamente o mundo ex-comunista e o Terceiro Mundo, em torno do consenso sobre os méritos da democracia, do estado de direito, dos direitos humanos, borregou em menos de duas décadas. Numa década a Guerra Eterna substituiu a Guerra Fria. Em década e meia, a confiança no sistema bancário globalizado, sob a forma de risco sistémico, foi transferida para os estados, interrompendo a esperança de desburocratização neoliberal. Os estados passaram a estar encarregues de manter os lucros privados das multinacionais à custa do bem-estar das populações. Isso torna praticamente impossível a legitimação dos poderes de estado e causa migrações à procura de rendimentos que se sabem existir nos centros metropolitanos imperiais.

No século XXI, o progressismo tornou-se uma ideologia deprimente. Como no entre guerras, nos anos 30 do século XX, o mundo novo ainda não se vislumbra, não se consegue imaginá-lo. O mundo velho está cada vez mais feio e decadente. Não é só a falta de condições de existência. É também a aparente inutilidade de trabalhar que magoa. Em que esperança pode assentar a certeza de as novas gerações irem viver pior que os seus pais?

A receita para aliviar a dor, estamos a vivê-la: é novamente a autoflagelação. É desejar a guerra, não questionar as hierarquias, e votar em neo-nazi-fascistas, seja os encartados ou proxis de direita ou de esquerda; imperialistas ou pós-colonialistas; unipolares ou multipolares.

As sucessivas falências do progressismo de esquerda e de direita correspondem a muitas falências que convergem num delta depressivo de onde ainda não se avista o mar que nos libertará das nossas actuais angústias. Como acontece com os náufragos, a gesticulação gasta energias que são indispensáveis para nos mantermos à tona. Não sobra nada para inventar a esperança.

Os apelos à participação cívica, à democracia, ao estado de direito, aos direitos humanos, são saudosismos de que ninguém acredita poder sair algo diferente do que foi já vivido. Como será possível ultrapassar a depressão? Com o tempo e com muitos mortos! Mas também com esperança mentalmente alimentada, contra ventos e marés. Esperança cuja fonte original é a fraternidade que caracteriza a espécie. Estado de espírito também conhecido por solidariedade (Durkheim, 1960, 2002) e sociabilidade (Illich, 2018).

A civilização constrói-se sobre essa fraternidade original, distorcendo-a em função da missão adoptada pelos soberanos que a herdam uns dos outros. O polo ocidental da civilização euro-asiática ganhou vantagem competitiva ao usar os oceanos para explorar a Terra, até que os meios de transporte e comunicação a transformaram numa aldeia global. Nas actuais circunstâncias, o polo oriental da Eurásia volta a fazer valer as suas potencialidades de ser o Império do Meio (Morris, 2013).  Para os herdeiros da civilização ocidental, a da democracia, do estado de direito, dos direitos humanos, da ciência, é hora de, em vez de se envolverem em guerras fratricidas e derrotadas à partida, valorizarem sem hipocrisia a ética revolucionária da liberdade, igualdade e fraternidade. A história dirá se isso irá acontecer ou não.

INÍCIO: Por um futuro feliz

CONTINUA: Multicrise do império

Referências:

Collins, R. (2013). Micro and Macro sociological causes of violent atrocities. Sociologia, Problemas e Práticas, 71, 9–22.

Durkheim, É. (1960). De la division de travail social ([1893]). PUF.

Durkheim, É. (2002). As Formas Elementares da Vida Religiosa ([1912]). Celta.

Fukuyama, F. (1999). O Fim da História e o Último Homem. Gradiva.

Illich, I. (2018). Para uma História das Necessidades. Edições Sempre-em-pé.

Marcuse, H. (1991). The New Forms of Control. In One-Dimension Man ([1964], pp. 3–20). Routledge & Kegan.

Morris, I. (2013). O Domínio do Ocidente. Bertrand.