Mês: Julho 2024

Resumo: As estatísticas, quando começaram a ser utilizadas para planeamento de políticas públicas, foram descritas por Disraeli, então primeiro-ministro do Império Britânico, como o superlativo das mentiras. Desde então as estatísticas tornaram-se imprescindíveis, seja para a administração (Supiot, 2015) seja para a sua automatização através da Inteligência Artificial (Pasquinelli, 2023).

As estatísticas são processos matemáticos usados na produção de conhecimentos baseados na redução de informação de modo a salientar aspectos não tão evidentes antes do processo ser aplicado. As estatísticas sofrem de erros próprios do processo. Alguns podem ser corrigidos, mas é preciso admitir a sua existência e investir tempo e dinheiro nessas correcções. Esses investimentos são ponderados por quem investe, em geral o estado.

As estatísticas são susceptíveis a manipulações. Estas são politicamente decididas, nomeadamente quando se estabelecem orçamentos de investimento de produção de estatísticas e há negociações entre os estaticistas e o estado sobre as prioridades a estabelecer no uso do dinheiro disponível. As manipulações são tecnicamente decididas durante o processo de produção, desde a definição dos conceitos até ao apuramento de dados, passando pela organização dos trabalhos de recolha de informação. As manipulações a que geralmente se chamam manipulações, com conotação pejorativa, são aplicadas na apresentação de resultados, quando se deturpa ou esconde informação que resultou do processo já realizado por ser politicamente (in)conveniente. Ou quando se forja informação que não foi produzida pelo processo e se faz passar como resultado do mesmo. Há ainda formas de apresentação das estatísticas, infelizmente habituais, que maximizam o erro, como quando se usam informações cujos limites de fiabilidade é são ignorados, tomando-as como se fossem mais verdadeiras do que a realidade de que servem de ilustração.

A maior fiabilidade das estatísticas é obtida quando se comparam resultados de operações semelhantes aplicadas a populações semelhantes em tempos diferentes. A comparação de diferenças quantitativas nos resultados de exercícios semelhantes sinalizam prováveis tendências de transformação nas populações estudadas que podem ser investigadas e eventualmente comprovadas através de outros métodos. A maioria dos usos da estatística, porém, servem observadores descomprometidos com a realidade, como os analistas e técnicos de planeamento das administrações. O compromisso desses observadores é com os interesses dos seus empregadores.

Efectivamente, os estudantes, os profissionais e o público facilmente se habituam a não dar atenção às manipulações (legítimas ou ilegítimas) a que estão sujeitas as informações estatísticas e a distanciar-se da realidade de modo a aceitar validar conclusões eventualmente apressadas, sempre interesseiras, das autoridades para poupar energia e o trabalho de escrutínio. Normalmente, as estatísticas descrevem realidades sincrónicas, longe da máxima fiabilidade do poder cognitivo desses processos de redução da informação. Para a sua interpretação, abrem campo à discricionariedade dos especialistas que frequentemente, a pretexto da interpretação das estatísticas, transformam opiniões em declarações científicas, mesmo quando sabem que podem errar estrondosamente. Atentem-se aos debates públicos sobre as estatísticas políticas e socio-económicas.

Todas as manipulações das estatísticas são organizadas a coberto do poder de sugestão de poder adquirido pelas matemáticas e pelas ciências para armar e desarmar a crítica. A ciência beneficia e sofre do seu prestígio. A possibilidade de quem se apresenta como especialista/cientista de ponderar a possibilidade de errar é minada pelo poder oracular socialmente atribuído às ideias creditadas cientificamente. “Está provado cientificamente!”, alega-se para evitar a crítica. O mesmo se passa com as questões políticas “informadas cientificamente”, “com base em evidências (i.e., produção de dados)”!

A matemática, desde Newton, tornou-se uma representação alternativa laica da divindade, sob a forma de misteriosa vontade omnisciente. Foi isso que levou Einstein a reclamar que “Deus não joga aos dados”! As probabilidades estatísticas são um instrumento que, se bem utilizado, pode ser útil. Porém, os segredos da natureza que a melhor ciência pode desencobrir situam-se em lugares que a estatística e a matemática não têm imaginação para atingir (Schofield, 2018). Não são os instrumentos, nem mesmo os matemáticos, que definem as finalidades para que são usados.

As ciências modernas são amplamente dependentes dos investimentos, de instrumentos tecnológicos e de concorrência entre grupos de cientistas para trabalhar. O que leva grande parte dos cientistas, nas suas actividades normais e como qualquer profissional, a não terem oportunidade de reflectir sobre os quadros e as finalidades mais gerais dos seus trabalhos (Kuhn, 1970). Focam-se sobretudo em reconhecer e aceitar os interesses dos financiadores para se inspirarem neles para produzirem projectos de investigação concorrenciais.

As estatísticas são uma invenção, ou sucessão de invenções: são uma produção cultural histórica que se tornou parte da realidade quando se estabeleceu historicamente de forma tangível. Os estados, a partir de 1853, data do primeiro Congresso Internacional de Estatística, criaram as condições para a criação da profissão dos estaticistas. A profissão passou a ser organizada pelo Instituto Internacional de Estatística fundado em 1885, envolvendo nesse ano perto de cinco milhares de profissionais e quase todos os países. Disraeli, primeiro-ministro e ministro das finanças da Rainha Victória na segunda metade do século XIX, ao tempo em que a produção estatística se institucionalizou, terá reconhecido os riscos de falta de fiabilidade desse tipo informação. Mark Twain pôs na boca do político a frase “There are three kinds of lies: Lies, Damned Lies, and Statistics” (há três tipos de mentiras: a mentiras, as grandes mentiras e as estatísticas).

Esta saga entre a verdade e a mentira estatística continua a evoluir: a produção de fake news para gerar efeitos de opinião é prática que resultou da instrumentalização estatisticamente organizada da internet pela publicidade (Lyon, 2001) que, uma vez consolidada, foi mobilizada para fins empresariais e políticos (Zuboff, 2019). A esperança de a internet ser um espaço de liberdade toldou-se pelo seu uso para pornografia infantil, para fins repressivos altamente intrusivos como a recolha abusiva de informação denunciada por Edward Snowden ou o crédito social concebido originalmente na China.

As conspirações políticas e empresariais hierarquicamente protegidas em torno de jogos de popularidade (Alexander, 2011; Lyotard, 1985) manipulam as verdades e sapam as liberdades (Arthur, 2021; O´Neil, 2016). Conseguem mesmo utilizar os sistemas judiciais e políticos para reprimir ilegalmente jornalistas, como Julien Assange e a sua fonte, Chelsea Manning, que usaram a internet para denunciar crimes contra a humanidade.

A confiança no que ditam os resultados matemáticos, os computadores, a internet e a Inteligência Artificial, de um modo geral os instrumentos, tornou-se inversamente proporcional à (falta de) confiança nas instituições e entre as pessoas. A esperança dos povos na libertação do trabalho e das penas por virtude dos automatismos e dos avanços da tecnociência, autênticas divindades modernas, contrasta com a experiência de negligência ou mesmo contradição entre essa esperança e as vontades políticas dos representantes do povo (Saramago, 2014). Ou como diz o vulgo, é preferível confiar nos animais e na natureza (nos produtos naturais) do que em humanos e no que é artificial. Não se pode voltar atrás?

Mas também será fácil encontrar pessoas que confiam no seu semelhante e preferem a vida urbana. Mais do que isso: conforme as circunstâncias, as pessoas confiam e desconfiam, mais ou menos, umas das outras, da natureza e das instituições. Coisa que as estatísticas mais usadas, de perguntas fechadas, não registam. Fazê-lo serviria uma ciência social inconveniente por atentar à instável plasticidade da natureza humana.

As estatísticas servem sobretudo a gestão das relações entre as elites e os povos, como o desenho e avaliação de políticas públicas. São produzidas para materializar ideologias, como as desenhadas pela economia, tornando-as indiscutíveis para o vulgo assim reduzido a optar entre crenças. Excluem considerar a pegada ecológica e a qualidade de vida das famílias (Stiglitz et al., 2009). Pressupõe e impõem discriminações, como as desenhadas pelas fronteiras nacionais (Llobera, 2000), ou moralismos, como a exclusão da prostituição, a mais velha profissão do mundo, por ser desprestigiante para as outras profissões.

Desde Newton, as ciências armam a crítica ao clericalismo, às teologias e às filosofias. Mas fazem-no de uma forma elitista, distante do vulgo, organizada hierarquicamente. Hierarquia que, por definição, manipula a acção de quem trabalha em baixo em função dos interesses de quem está em cima, nomeadamente estratificando os acessos a informação e subtraindo a mais sintética e estratégica dos âmbitos mais baixos, tanto dos aprendizes e dos profissionais como do vulgo (Dores, 2021).

As estatísticas são poderosos instrumentos intelectuais geralmente fabricadas pelos estados que encobrem os abusos praticados sob as suas ordens contra as famílias, contra a natureza e contra partes importantes da população, excluindo-as da possibilidade de escrutinar as políticas. Como terá dito Henry Ford: “Se as pessoas soubessem como funciona a banca, haveria uma revolução antes da manhã seguinte“.

Churchill disse um dia, a democracia é o pior regime político com excepção de todos os outros. E ainda hoje, apesar das críticas, os estados democráticos continuam a considerar-se democráticos de forma acrítica, sem haver escrutínio caso a caso. Tomam a democracia como um dado indiscutível, tabu, o que é geralmente aceite pela população. Na verdade, como as ditaduras e o autoritarismo também são aceites pelos povos a eles sujeitos. Onde traçar a linha vermelha entre a democracia e a ditadura? Onde traçar a linha vermelha entre a verdade e a mentira? Tudo se continua a reduzir à convicção, à fé?

O que se passa ao mais alto nível, nomeadamente a nível nacional e internacional, com os segredos militares e de estado? Chamemos segredo social ao fenómeno capaz de encobrir aquilo que pode ser evidenciado, mas cuja revelação é praticamente impossível.

Há segredo social a encobrir os abusos contra crianças, em particular os abusos sexuais. Tradicionalmente designados por incesto, para grande desconforto social, nas últimas décadas descobriu-se que a privacidade das relações íntimas podia incluir o encobrimento de abusos cujos contornos são difíceis de explicar ou compreender (Furniss, 1993). Descobriu-se também que as instituições de apoio social a crianças desvalidas eram e são coitos para abusadores sexuais com comportamentos predatórios (estimativas apontam entre 7% e 25% das crianças serem vítimas). A Igreja Católica tornou isso num dos focos principais da sua atenção, na esperança da luz dissipar os segredos sociais que deram guarida a abusadores no seu seio.

Embora a troca de informações sobre experiências traumáticas, sexuais ou políticas, seja corrente, essas informações são trocadas sob sigilo, na privacidade, insusceptíveis de serem reveladas estatisticamente (Archer, 2003). A sua menção pode facilmente revitimizar as vítimas e servir os abusadores (AAVV, 2013).

Referências:

AAVV. (2013). Para uma Justiça Transformativa. António Pedro Dores. http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica transformativa/

Alexander, J. C. (2011). Performance and Power. Polity.

Archer, M. (2003). Structure, Agency, and the Internal Conversation. Cambridge University Press.

Arthur, C. (2021). Social Warming: how social media polarises us all. Oneworld.

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

Furniss, T. (1993). Abuso Sexual de Criança – uma abordagem multidisciplinar. Artmed editora.

Kuhn, T. S. (1970). La structure des révolutions scientifiques. Flammarion.

Llobera, J. R. (2000). O Deus da Modernidade – O Desenvolvimento do Nacionalismo na Europa Ocidental. Celta.

Lyon, D. (2001). Surveillance Society. Open University Press.

Lyotard, J.-F. (1985). A Condição Pós-Moderna. Gradiva.

O´Neil, C. (2016). Weapons of Math Destruction. Penguin Books.

Pasquinelli, M. (2023). The Eye of the Master – A Social History of Artificial Intelligence. Verso.

Saramago, J. (2014). Levantado do Chão ([1980]). Porto Editora.

Schofield, J. (2018). The Real Philosophy of Science. Smashwords.

Stiglitz, J. E., Sen, A., & Fitoussi, J.-P. (2009). Measurement of Economic Performance and Social Progress. Sciences Po. Publications.

Supiot, A. (2015). La gouvernance par les nombres. Fayard.

Zuboff, S. (2019). The Age of Surveillance Capitalism. Profile Books.

Resumo: A liberdade oferecida aos trabalhadores foi pírica. A conquista da liberdade para os trabalhadores não resultou: o socialismo real reverteu-se em capitalismo. Houve sempre muita repressão e guerras envolvidas. Mas a intensificação da intromissão das organizações na vida e nas mentes dos trabalhadores tornou-os indivíduos, autómatos biológicos programados por teorias: a meritocracia foi apresentada como algo moderno, mas afinal é uma versão confucionista da aristocracia.

A ameaça credível da utilização de força bruta contra pessoas indefesas, ainda por cima em nome da lei, intimida. Ultrapassar a intimidação a que se está habituado exige uma grande determinação que só pode ser mantida em solidariedade entre parceiros mutuamente confiáveis. Em caso, mais do que provável, de repressão devem manter-se fiéis aos seus desígnios comuns.

Tal como o amor é para toda a vida, também o activismo o é. Como no amor, porém, as traições são humanas e frequentes. As mudanças de campo acontecem. E não são meros acessórios: são também oportunidades para reorganizar as lutas a favor e contra os poderes brutais e brutalizadores.

A brutalidade por si só é capaz de tornar um castelo inexpugnável. Não é capaz de conquistar os favores de uma sociedade de trabalhadores livres. Aquilo que leva trabalhadores livres a imaginarem-se livres e comportarem-se como súbditos é a organização social. Brutalidade e organização social são incorporadas pelo hábito, incluindo os hábitos organizados de pensar, trabalhar, sobreviver, mesmo se para servir propósitos alheios ou até contraditórios com os interesses e anseios próprios. Como costumam dizer os trabalhadores, trabalhamos para sustentar as famílias. Sem pensar sobre se estamos a contribuir para construir sociedades melhores, somos levados a dizer isso em função das ameaças credíveis de cair na miséria se o não fizermos.

As teorias disponíveis para se tomar consciência dos labirintos sociais em que a igualdade desejável se revela discriminação sistemática, limitando as liberdades da maioria, não têm sido suficientemente resilientes à história e às realidades. Falta imaginação capaz de sustentar a disponibilidade de colocar em causa aquilo que se sabe não estar a funcionar conforme previsto. Na presente fase histórica, desde 2010 altura em que foi estruturada internacionalmente a resposta imperial à falência do recentemente instalado sistema financeiro global, as ideias nazi-fascistas são mais atraentes para os eleitores. Não estão dispostos a mudar a sua vida: exigem que todos os outros, sobretudo os que são vítimas fáceis de humilhação em grupo, desapareçam de circulação, prometendo a retoma mágica da velha ordem mitificada. Sem imigrantes, muçulmanos, LGBTI+, mulheres, tudo corria bem – tudo voltaria ao normal.

Este fenómeno não é apenas partidário: ele é social. À direita usa-se a teoria do estado-nação para fechar ficticiamente fronteiras como forma de legitimar a brutalidade das repressões arbitrárias. À esquerda usa-se o estado social idealizado no pós-guerra, o que redundou naquilo que há hoje, para satisfazer os desejos de voltar ao normal. Por isso, não é no activismo que há falhas: cada vez há mais activistas e nem por isso há melhorias ou sequer esperanças de melhorias no campo da política. As falhas são teóricas: para que fins devemos organizar as nossas vidas, conservadoras ou emancipatórias, tendo em vista o futuro?

Estamos numa época histórica marcada pela experiência do aquecimento global e pela implosão da União Soviética, experiência socialista de inspiração marxista. A primeira revela as limitações da economia política, incapaz de ter em conta o meio ambiente. A segunda regista a derrota estratégica do grande movimento social de trabalhadores iniciado por Engels (1975). A sequência histórica do capitalismo para o socialismo, do respeito crescente pelos trabalhadores, foi revertida. As razões entusiasticamente acolhidas no século XX exigem revisão e renovação. O determinismo histórico não funcionou; não funciona. Onde procurar fontes de esperança?

Para proceder a uma comparação entre a condição das classes trabalhadoras inglesas do século XIX e as portuguesas do século XXI, há que ter em conta que no primeiro caso se vivia a afirmação da nova sede imperial em Londres e actualmente se vive a decadência da sede imperial em Washington desafiada pelos BRICS. Estes são liderados pela China comunista rendida ao capitalismo em razão da vitória norte-americana na Guerra Fria. A China reclama agora o respeito do Ocidente pelos tratados internacionais de livre comércio engendrados por Washington para globalizar o capitalismo. A expansão do capitalismo a todo o planeta, porém, está a sapar o poder imperial dos EUA (Harvey, 2011; Hudson, 2022; Morris, 2013).

Entre o século XIX e o século XXI, o capitalismo faliu várias vezes, ressuscitou de duas guerras mundiais, sujeitou-se ao poder dos trabalhadores sob a forma de regimes comunistas, sociais-democratas e democratas cristãos, libertou-se deles com sucesso – como diria Warren Buffett, os super-ricos estão a lutar e a ganhar a luta de classes. Porém, a concorrência entre capitalistas e impérios continua a sustentar-se em extrema violência física e económica contra trabalhadores, povos, pessoas pobres – agora ameaçados também pelas alterações climáticas – obrigando cada vez mais gente a colaborar com desígnios evidentemente imorais, mas persistentes, cujo escrutínio continua a ser limitado, censurado, apesar do grande desenvolvimento das ciências, da escolarização e dos meios de comunicação.

Dito de outro modo, no século XXI a propaganda foi levada a extremos não previsíveis por Engels, para quem a publicidade-entretenimento, o telefone, a televisão, a internet, eram inimagináveis. Como imaginar a subversão das finalidades instrutivas das escolas e de produção de conhecimentos das ciências ao serviço dos desígnios exploradores mais amplos do que aqueles em vigor do século XIX (Dores, 2021)? Os entretenimentos, as tecnologias, as escolas e as ciências tornaram-se parte integrante e indispensável do aparato de censura e opressão ideológicas dos trabalhadores. A esperança de humanização de que falou Engels, inspirado no convívio com trabalhadores, foi depositada no crescimento das economias e das ciências. Mas em vez de produzir uma sociedade sem classes, produziu sociedades globalizadas alegadamente pós-modernas e pós-coloniais que, afinal, estão a revelar-se saudosas do nazi-fascismo, do reforço da aliança aristocrática-burguesa e da fragilização da aliança burguesa-proletária.

A meritocracia não é mais do que uma justificação, tão imoral como a violência aristocrática (Sandel, 2020), para sustentar o acolhimento da lógica imperial pela mentalidade vulgar. Ao modo confuciano, a meritocracia utiliza as avaliações promovidas por escolas e universidades, replicadas também em ambientes laborais e profissionais, para legitimar privilégios e discriminações sociais (Bourdieu & Passeron, 1964, 1970; Supiot, 2015, Pasquinelli, 2023). Aceita-se geralmente a meritocracia sem questionar a injustiça da pobreza em que vivem muitas crianças (O´Neil, 2016). Os privilégios conquistados para a vida em alguns anos de estudo na juventude são aceites como justos, mesmo quando não promovem sociedades melhores (Markovits, 2019). A supremacia repudiada platonicamente por alguns (e por enquanto) como patriarcalismos, racismos e elitismos, é banalizada nas vivências escolares, profissionais, institucionais. Não é apenas marginal e importada de antigos vícios sociais. É estrutural nas sociedades modernas, de que as estigmatizações são o peso do fio de prumo, o contraponto dissimulado, esquecido pelo optimismo edificante e comprometido.

A eventual má consciência de quem se sinta responsável e as promessas de reparação, como foi a posição adoptada por Engels, não têm sido capazes de reconhecer as estruturas sociais aristocráticas e imperiais que se reproduzem milenarmente incorporadas hoje não apenas nas elites, mas virtualmente em toda a humanidade.

O espírito imperial generalizado não é reconhecido. Para escamotear a sua presença ubíqua, tudo é reduzido a tautologias: sempre terá havido pobres e ricos, todos os seres humanos são diferentes entre si. De forma sintética, nada se poderá fazer contra o aspecto hierárquico da natureza humana. Eis a falsidade menos reconhecida e mais repetida (Graeber & Wengrow, 2021; Nunes, 2003; Silva, 2003; Todd, 2018). Contra essa resignação interesseira se levantaram Engels e utopias, como o socialismo, os direitos humanos, os movimentos pacifistas, as intenções de distribuição moralizada de recursos que permita toda a gente viver com dignidade (Skidelsky & Skidelsky, 2012).

No pós-guerra novos movimentos críticos pareciam estar a afirmar-se, sobretudo entre as mulheres e os jovens, além dos operários. Mas hoje, apesar da difusão dos movimentos sociais, não há condições para um número razoável de pessoas acreditar que é possível ultrapassar as ilusões que bloqueiam as acções anti-discriminatórias desejáveis. Perante essa impotência, ganha adeptos a resignação de ser preferível reforçar as discriminações, na esperança que emirja daí uma ordem mais fiável do que a que se vive.

A esperança de que Engels foi portador e se veio a expandir no seu tempo, de tal modo que se tornou numa referência central dos movimentos dos trabalhadores, está em falta do cardápio dos estados de espírito socialmente dominantes. No campo da política, uma onda negra de revolta da extrema-direita contra a modernização e as suas falsas promessas, com mais de duzentos anos, reclama por ordem, uma ordem hierárquica ainda mais rígida, mais brutalmente exploradora, indiferente ao meio ambiente e às pessoas, aliando o pior dos velhos aristocratas e dos novos meritocratas.

A esperança representada por Engels galvanizou povos inteiros durante o século XX, mas já não mobiliza mais. Se Alberoni (1989) está certo, não há depressão que sempre dure. Um dia, de surpresa, os bons espíritos convergirão como Martin Luther King, Jr. desejou que ocorresse quando disse: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons!” Esse discurso será anti-imperial, como foi o de Engels, Martin Luther King, Jr., Angela Davis, Mandela, Chelsea Manning e muitos outros. Mas terá de adoptar uma forma mais incisivamente recursiva (Corballis, 2011), isto é, ancorada profundamente nas identidades sociais e respectivas espectativas com vista a tecer críticas pragmáticas dos abusos de violência que condicionam em vez de libertar estados de espírito felizes.

COMEÇA EM: A violência nas pontas das espingardas escamoteada nas ciências sociais

Referências:

Alberoni, F. (1989). Génese. Bertrand.

Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (1964). Les Héritiers. Éditions de Minuit.

Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (1970). La Reproduction: éléments d’une théorie du système d’enseignement. Éditions de Minuit.

Corballis, M. C. (2011). The Recursive Mind – The Origins of Human Language, Thought, and Civilization. Princeton University Press.

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

Engels, F. (1975). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra ([1845]). Editorial Presença.

Graeber, D., & Wengrow, D. (2021). The dawn of everything – a new history of humanity. Farrar, Straus and Giroux.

Harvey, D. (2011). Spaces of capital: towards a critical geography. Routledge.

Hudson, M. (2022). The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism. ISLET—Verlag.

Markovits, D. (2019). The Meritocracy Trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite. Allen Lane & Penguin Books.

Morris, I. (2013). O Domínio do Ocidente (1^a ed. 201). Bertrand.

Nunes, A. (2003). Neo-liberalismo e Direitos Humanos. Caminho.

O´Neil, C. (2016). Weapons of Math Destruction. Penguin Books.

Pasquinelli, M. (2023). The Eye of the Master – A Social History of Artificial Intelligence. Verso.

Sandel, M. J. (2020). The Tyranny of Merit. Penguin Books.

Silva, J. C. G. da. (2003). O Discurso Contra Si Próprio. Assírio e Alvim.

Skidelsky, R., & Skidelsky, E. (2012). How Much is Enough? Penguin Books.

Supiot, A. (2015). La gouvernance par les nombres. Fayard.

Todd, E. (2018). Onde estamos? Círculo de Leitores.

Resumo: Na guerra, nos tribunais e na economia, tudo é concebido como se a soberania, a justiça e a riqueza, fossem mundos-sistemas independentes entre si, irresponsáveis pelos resultados práticos gerais da convergência de esforços. Há pessoas e instituições que entendem e procuram superar a irresponsabilidade generalizada. Os limites da responsabilização estão bem patentes no direito criminal, onde a impunidade convive com o punitivismo.

Não é só a divisão institucional dos estados-nação que dispersa as responsabilidades das elites, do direito e das administrações pelo que se passa na economia. Além da separação de poderes de soberania, a ordem internacional apresenta-se como se fosse uma administração sem governo, uma anarquia. Na verdade, conta com um governo na sombra (Keene, 2002), as elites que dão continuidade à missão imperial e às alianças entre aristocracias e burguesias divididas local e internacionalmente.

A Guerra Fria introduziu um equívoco ideológico que não desmascarou a organização do poder imperial. Cindiu o império em duas facções: a do império da liberdade e a do império da igualdade, os países comunistas. A verdadeira contradição opõe os impérios oceânicos aos impérios continentais (Todd, 2018); na Europa, os herdeiros do Império Romano do Ocidente e os do Império Romano do Oriente, com as respectivas versões de cristianismo.

Isso explica porque na guerra da Ucrânia os militares da Federação Russa, capitalista, são incentivados a referir-se à grandeza czarista e soviética como exemplos de grandeza imperial a conquistar pela guerra. Explica porque muitos comentadores e políticos ocidentais continuam a apontar a Federação Russa como um regime comunista, a contra-senso. Fazendo parte de partidos da guerra imperiais, tais comentadores escamoteiam a existência de negociações permanentes entre interesses imperiais, confundindo as pessoas com velhos preconceitos da Guerra Fria. Na verdade, para animar o empenho popular em seguir as elites russas e os seus interesses continentais, o Kremlin usa também a religião e o czarismo, ambos, como os comunistas russos, empenhados em ter um lugar de liderança na missão imperial.

Desenvolveram-se formas panópticas (Bentham et al., 2000) de viver em sociedade aplicadas indistintamente no Ocidente e a Leste: a burguesia organizada pela administração dos estados exerce as principais tarefas de vigilância social através do sistema económico (Pasquinelli, 2023; Supiot, 2015; Zuboff, 2019). Conduz os seus subordinados devidamente individualizados sem precisar conhecer o sentido geral das ordens engendradas no seio da aristocracia internacional, multinacionais ou nomenclaturas. Limita-se a aproveitar as oportunidades oferecidas a quem obedecer aos interesses superiores.

O inquérito de Engels (1975) distinguiu-se e distingue-se das ideologias dominantes por manifestar respeito pelas pessoas dos trabalhadores cujas dificuldades existenciais são referidas nos relatórios do estado. Atitude rara no século XIX e no século XXI. Engels não estava sozinho. Parte da burguesia tentava (e tenta) reconhecer as pessoas por detrás dos recursos humanos, como o Owenismo e a filantropia do século XIX ou o empreendedorismo social no século XXI. Mas Engels notou uma diferença entre isso e a humanidade sem hierarquias, sem concessões à aristocracia, espontânea nas classes trabalhadoras. Estas auto-ajudavam-se a minimizar as misérias com que se confrontavam, apesar da escassez de recursos ser real e não meramente retórica, como é quase sempre no caso da burguesia. Característica social que continua a poder observar-se hoje, nomeadamente quando ocorrem eventos catastróficos. Uns reconstroem as redes de acesso a bens essenciais e outros exploram a situação com espírito empreendedor.

A burguesia estabeleceu-se como uma ordem intermédia, a dos empresários activos na economia, sector que separou a moral e os negócios. Uma classe média que se imaginava, e imagina, nem aristocrática e violenta, nem proletária, mas trabalhadora, independente da aristocracia. Tabus e censuras limitavam – e continuam a limitar – as representações do quotidiano sobre as verdadeiras relações de classe entre a aristocracia e a burguesia, entre as ideologias supremacistas e o mundo do trabalho (Queiroz, 2011), num quadro de submissão da auto-imagem dos burgueses e dos trabalhadores a uma moral elitista abstracta, como se fosse eterna e divina (Nietzsche, 1997).

As classes sociais e as pessoas protegem-se das suas responsabilidades morais por alinharem no belicismo imperial, afirmando-se capitalistas. Porém, esse alinhamento não é voluntário: é pré-requisito para aceder a oportunidades de lucros e a postos de trabalho. Classes sociais e pessoas fecham-se em torno dos seus interesses reconhecidos, protegendo-se das consequências das acções imperiais que não controlam. As elites aristocráticas subsistem por terem construído socialmente uma camuflagem sobretudo internacional sobre como funciona o seu poder. A par das classes sociais subsistem ordens sociais (Bentham et al., 2000; Bourdieu & Passeron, 1970; Lahire, 2003, 2012; Silva, 2003). Escolas, comunicação social, profissões, naturalizam os panópticos organizacionais legitimados pelo espírito imperial que se submete acriticamente à missão imperial.

O campo do direito, por exemplo, encara a organização técnica da divisão de trabalho sob a capa de liberdade contratual regulada e manipulada pelo direito (Pistor, 2019). Afirma constitucionalmente a igualdade perante a lei e a soberania popular para corresponder aos desejos revolucionários historicamente manifestados. Mas subdivide-se de modo a tratar distintamente diferentes classes de pessoas, como os trabalhadores, os funcionários, os empresários, os investidores, e não tratar os aristocratas, remetidos para regimes de invisibilidade e auto-regulação também conhecidos por anarquia das relações internacionais (Keene, 2002). O direito criminal, que alega existir para conter a violência, revela-se impotente para com a violência dos de cima e arbitrário para com os debaixo, mesmo quando não são violentos (Jakobs & Meliá, 2003). É como se a violência só ocorresse debaixo para cima e a violência imperial – como a que é tratada no Conselho de Segurança da ONU e nos tribunais internacionais com jurisdição sobre a guerra, tanto no caso da Ucrânia (2022- ) como no de Israel (2023 – ) – simplesmente não existisse por estar fora das jurisdições dos tribunais comuns.

As ideologias burguesas mudam, mas todas insistem em separar os mercados dos estados – de que não se sentem responsáveis a não ser a respeito da platónica exigência de paz e estabilidade para os seus negócios. Quando as coisas correm mal, a burguesia não hesita em apoiar as guerras, por mais obscenas e injustas que sejam. Infelizmente, convencem muitos trabalhadores, incluindo os que vão para a frente de batalha, que isso é uma questão de honra.

No Portugal pós-revolucionário em que vivemos há meio século, o cooperativismo de que Owen foi percursor é reconhecido na Constituição como sector económico a proteger, mas é de facto social e laboralmente irrelevante. A filantropia, por seu lado, está igualmente protegida e foi desenvolvida no quadro do Estado Social (Dores, 2020) sob o controlo estatal da segurança social. É assessorada por obras religiosas e ONG financiadas de acordo com regras internacionais que garantem a manutenção de registos administrativos da acção dos pobres. A intensificação e sofisticação dos apoios sociais controladores, desde quando Engels produziu o inquérito referido, alimenta os segredos de estado que são usados conter ou instigar a agitação social.

Como Engels previu, não seria possível aos trabalhadores viverem as vidas desumanas que viviam ao tempo sem se empenharem em esforços que pudessem criar esperança em condições de vida melhores, auto-reguladas como as dos aristocratas. No século XIX, auxiliavam-se mútua e organizadamente de uma forma que contrastava com a indiferença cínica e ignorante da burguesia. No século XXI, alguns dos trabalhadores vivem tão bem quanto os aristocratas e burgueses mais modestos. Mas a pobreza persiste em volumes grandiosos e só uma parte dessa pobreza é mitigada pela organização dos sectores profissionalizados de intervenção social filantrópica. Por outro lado, tem-se assistido à mobilização dos direitos humanos para legitimar guerras preventivas, desmantelamento de estados, tentativas de mudança de regime, formas de controlo social – mais evidentes no caso dos imigrantes – em vez da pacificação das relações sociais.

O pós-guerra construiu um regime de penas hierarquizadas – pobreza apoiada, pobreza a pedir apoio, pobreza criminalizada – que gere de forma sofisticada a necessidade estrutural do capitalismo de pauperizar as sociedades, conforme explicado pela teoria do valor-trabalho de Karl Marx. São penas muito mais abrangentes do que aquelas que o sistema criminal é capaz de impor. O que o sistema criminal faz de relevante é identificar-se exemplarmente com a justiça punitiva, sacrificial. A parte da humanidade que é mantida em condições de sofrimento é encarada (eventualmente por si própria) como culpada, mesmo que não saiba do quê. O direito criminal é uma técnica institucional que assegura ser capaz de identificar a culpa e pesá-la de forma objectiva em termos de anos de prisão. Mas só o faz, mal ou bem, num número pequeno de casos e nos limites da jurisdição de cada tribunal. O resto passa impune, para desespero das polícias e dos crentes na justiça abstracta representada pelos juízes, procuradores, polícias e, eventualmente, advogados.

Em termos gerais, a cultura sacrificial moderna faz coincidir as vítimas das sociedades e as culpas por as sociedades funcionarem mal. O poder dos tribunais criminais inscreve-se na organização imperial da capacidade de gestão da irresponsabilidade generalizada perante os resultados práticos da missão imperial em curso.

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Referências:

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