Resumo: A depressão é uma doença ou uma condição que inibe a felicidade. Há sociabilidades mais propícias que outras a recuperar bem e rapidamente das depressões. Identidades dignificadas e desígnios estimulantes, apoiados em culturas coerentes e princípios morais compatíveis, reduzem a incidência da depressão e abrem mais oportunidades para a experiência da felicidade (Alberoni, 1989).
A noção de que os instrumentos sociais de que dispomos deixaram de ser favoráveis à nossa felicidade, a multicrise, é uma situação que vitimiza os povos alvo de genocídio, alguns há séculos, outros há décadas. Igualmente, as famílias de pobres excluídas pela civilização, experimentam a força das respectivas depressões crónicas, eventualmente reforçadas e aliviadas por vícios. Porém, povos e classes privilegiados também se desencantam com as suas condições, como é o caso actualmente no ocidente. Sabemos que os nossos filhos irão viver pior do que vivemos nós, e não há esperança de haver uma saída para o rumo negativo dos acontecimentos.
É tempo de ser radical, de ir à raiz da nossa civilização e recuperar o que possa ser recuperado, substituir o que possa ser substituído, destruir para reconstruir. Usar as necessidades para oferecer esperança aos sobreviventes.
O neonazi-fascismo propõem-se utilizar a depressão para reforçar os poderes instituídos naturalizando os abusos. Em vez de questionar a validade da missão imperial de explorar a Terra e os povos – exercício que raros se atrevem a fazer sinceramente, sobretudo por razões económicas erradamente associadas a sobrevivência – os neonazi-fascistas oferecem a perspectiva sacrificial, auto flageladora.
As ciências sociais, a comunicação social, as ideologias, a escolarização, a profissionalização, têm sido instrumentos de submissão voluntária dos povos à missão imperial. Fazem-no racionalmente, nomeadamente, aplanando a realidade em duas dimensões, desencantando a Terra e as sociabilidades. O Estado Social real também se funda em sacrifícios, especialmente laborais e punitivos. O neonazi-fascismo estende o espírito sacrificial – o espírito imperial – ao quotidiano e à cidadania.
Reencantar a vida pode recuperar o que seja recuperável do desencanto da civilização, reenquadrando-a numa missão alternativa à missão imperial compatível com a fraternidade original.
Duas das crenças estruturantes do pensamento económico são a ideia de que o comércio instigaria à paz e a de que os interesses objectivos se imporiam às idiossincrasias culturais. O comércio deveria servir o progresso, a abolição das rendas e das guerras aristocráticas, multiplicar as tecnologias que resolveriam todos os problemas, incluindo os da fome e da pobreza e, com isso, a principal causa dos crimes – como roubar e matar.
A promessa da economia, como da política de progresso, funciona como uma cenoura virtual desenhada num écran em frente dos nossos olhos. Nunca de realiza. Ou numa versão atribuída a povos colonizados, o trabalho de branco nunca acaba. Numa versão banalizada até por outras civilizações, com o império ocidental a história atingiu o seu cume, o seu zénite. Numa versão académica deu-se o fim da história (Fukuyama, 1999). A simples lógica serve para perceber estarmos perante uma falácia, uma encenação, a do crescimento infinito num mundo finito. Porém a missão imperial adquiriu o poder de orientar as nossas vidas pessoais e colectivas como uma teia de aranha captura um insecto.

Direitos humanos, democracia, estado de direito, valores humanistas, são culturas especializadas consideradas desejáveis se forem compatíveis com punições colectivas, como as penas aplicadas contra ciganos e descendentes de povos colonizados eventualmente sujeitos a deportação e genocídio. Quando se trata de desalojar as populações residentes em bairros populares ou territórios para os quais haja planos de desenvolvimento, as culturas morais instituídas perdem curso em função de alegações de emergências sanitárias, económicas, policiais ou de outra natureza. Quando a conflitualidade exigiria a aplicação das normas é quando as normas são suspensas sine die (Agamben, 2004).
Os valores ocidentais aspiram a serem úteis, em abstracto, para qualquer ser humano em qualquer situação. Porém, a sua aplicação é frequentemente suspensa, perversa, encobrindo e justificando violências extremas organizadas por quem tem por função proteger esses valores. Não é fácil descrever e perceber como as esperanças na civilização vingam simultaneamente com a desumanização que vem junto. Mas é essa a tarefa que precisa ser cumprida pelas ciências sociais, agora.
Com o fim da Guerra Fria, com a implosão da experiência igualitária soviética, a globalização liberal ficou o único poder organizado na Terra. Do lema revolucionário do século XVIII, a fraternidade foi emudecida e a igualdade derrotada: restou a liberdade que inspira a democracia, os direitos humanos, os estados de direito coxos, intermitentes, desaparecidos em combate quando mais são precisos. A globalização prometeu construir-se em aldeia global, a sociedade do conhecimento, acessível a todos através dos ascensores sociais educativos e financeiros, os certificados de mérito, o crédito de acesso ao consumo, as tecnologias de informação e comunicação. Em menos de vinte anos, tudo se revelou falso, com a reinstauração da guerra eterna em 2003, a falência do sistema financeiro global em 2008 e a monopolização da internet (Zuboff, 2019). O que nos restou, como mostrou a pandemia, foi a fuga para os mundos virtuais que ainda não sabemos utilizar para tirar o melhor proveito e evitar danos, nomeadamente a agravamento das depressões (Haidt, 2024).
Nos anos 80, a convicção economicista, tecnocrata, de progresso atraiu as elites soviéticas a ponto de se entregarem ao inimigo, os EUA. Porém, o número de prisioneiros (Gilmore, 2007), a pobreza e as desigualdades não pararam de aumentar (Piketty, 2013; Wilkinson & Pickett, 2009) nacional e globalmente. O capitalismo financeiro reduziu o investimento produtivo em favor da especulação (Hudson, 2022). Os orçamentos militares nunca pararam de aumentar acima do crescimento da economia (Rolo, 2006) e a guerra foi atingindo cada vez mais pessoas, nomeadamente refugiados e emigrantes cujos números não param de aumentar.
A política de muros não surgiu com Trump (Akkerman, 2019). Apesar da mortandade que caracterizam as rotas migratórios acompanhadas por crescente número de traficantes de pessoas, drogas, armas, e outros bens transaccionáveis, os estados preferem trair os princípios dos direitos humanos. Embora a globalização tenha prometido livre circulação de pessoas, como passou a acontecer entre os países da União Europeia, os impedimentos à sua concretização fora da Europa fortaleza reprimiram, torturaram, criminalizaram os migrantes-refugiados (Palidda, 2011). Tal como mostra a longa tradição imperial de uso de proibicionismos, as proibições e a opressão geram economias paralelas (Woodiwiss, 1988) que facilmente são usadas para alimentar as divisões sociais, explorar a miséria e mobilizar as sociedades contra o crime de que os estados extraem o seu poder.

Apesar dos avisos de políticos experimentados (Amaral, 2003), a submissão dos estados europeus às estratégias imperiais norte-americanas de tomar em mãos o mundo, à moda do Grande Ditador de Chaplin, não os levou a aproveitar a falência do sistema financeiro global, em 2008, para se libertarem da hierarquia internacional unipolar, de que a UE foi o segundo parceiro. Pelo contrário, trouxe à UE práticas financeiras coloniais de utilização da dívida para inibir a democracia, como mostra o caso do referendo na Grécia, em 2015. Política de submissão imperial que resultou na ridícula situação de a União Europeia (EU) desistir do megaprojecto de comprar de energia barata à Rússia (Nord Stream 2), projecto que seria a garantia de competitividade internacional do Norte da Europa e motor económico da EU. Aceitou passar a comprar energia mais cara aos EUA que logo, após a tomada de posse de Trump em 2025, trocou a aliança com a UE pela aliança com a Rússia.
O economicismo serve para inibir actividades de oposição capazes de darem conteúdo real à democracia (Marcuse, 1991). Mas quando se trata de submissão ao império, no caso aos EUA, o economicismo deixa de ser o critério principal. Não são só os interesses dos trabalhadores que são limitados pela sua fidelidade aos patrões, de quem dependem. Também os interesses das elites estão limitados à direcção da missão imperial que reclama a unidade do poder e a inibição das oposições.
A unanimidade dos partidos em tomar o crescimento do PIB como a referência estratégica é sintoma dessa unidade. A impotência do decrescentismo, do anti-extrativismo, da justiça transformativa, da permacultura e de outras sugestões de orientação humanista de políticas públicas é o seu corolário.
O estado social usa as ciências sociais para conduzir movimentos sociais a espaços políticos higienizados, especializados. Dependentes financeiramente dos estados, os movimentos sociais acabam por se submeter politicamente, empenhados em lutas por recursos criteriosamente disponibilizados a conta gotas, como favorecimentos, como privilégios, por políticas de cenoura de estados sociais. O negócio economicista que reduziu os movimentos dos trabalhadores a parceiros sociais dos patrões e dos estados (Dores, 2020) resultou em submissão, em acatamento da missão imperial. O mesmo regime passou a ser utilizado para dispersar os movimentos sociais entre si.
A interseccionalidade (AAVV, 2020; Crenshaw, 2012) apela voluntaristicamente à consciência dos activistas para que aceitem trabalhar em conjunto, gerando eventualmente energia política que não têm como especialistas. Para a interseccionalidade vingar ajudaria ser usada para subverter a submissão em que se estabelecem os movimentos sociais sob o estado social e, indirectamente, sob a missão imperial. Há que reconhecer que, em democracia ou ditadura, a missão imperial é desumana, suicidária e deve ser abolida. A missão que pode unir a humanidade em democracia, direitos humanos e estado de direito é a de reencantar a Terra e a vida, oferecer às pessoas o usufruto de todas as dimensões existenciais que podem ser experimentadas (Dores, 2005).

O apelo da deputada brasileira Erundina (2025) foi ensaiado, sem sucesso duradoiro, na Primavera Árabe (El-Fattah, 2021), que teve repercussões em Espanha, com os Indignados traídos pelo partido Podemos, nos EUA, com os Occupy Wall Street violentamente reprimidos, na UE, com o DIEM25 de Varoufakis que nunca se afirmou. O apelo de Erundina tem raízes no processo de construção do Partido dos Trabalhadores, no Brasil, contra a ditadura e o neoliberalismo, de que resultou o Fórum Social Mundial, a sua organização transnacional de massas recrutadas entre os activistas dos movimentos sociais. Tem raízes também em práticas ancestrais mobilizadas por Zapatistas e em Rojava, que se querem juntar a movimentos sociais modernos. Apesar dos contratempos, como a recuperação dos movimentos abolicionistas da escravatura, do totalitarismo, do patriarcalismo, do clericalismo, do capitalismo, do colonialismo, o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade que serviu de lema à Revolução Francesa continua a servir de guia. Mas não tem sido suficiente para contrariar o esfrangalhamento dos movimentos sociais divididos em especializações sectárias e ideológicas.
Para manter o entusiasmo, a imaginação actuante, a liberdade com respeito humanista por processos de transformação alternativos aos actualmente conduzidos há meio milénio pela missão imperial ocidental, a exploração da Terra para acumular riquezas, não há, evidentemente, balas de prata, panaceias. Há que abrir espaços de liberdade concebidos para serem igualitários e fraternais.
Em vez de processos revolucionários ou movimentos sociais isolados e reprimidos pelas instituições, em vez de estruturas opressivas acriticamente tomadas por indispensáveis, o que há a fazer é desenvolver liberdades para identificar e abolir pacientemente e com sensibilidade humanista – até os nossos inimigos são humanos – os mecanismos sociais de reprodução e manutenção dos poderes abusivos que nos intimam a seguir, colectiva, grupal e individualmente, caminhos contrários aos nossos desejos e interesses: os da missão imperial consagrada, em vez de ser abolida. A igualdade e a fraternidade são critérios indispensáveis de avaliação da qualidade das liberdades a produzir para identificar cientificamente os nossos desejos e interesses legítimos.
Em vez de repressão e guerra, a coerção social deveria ser orientada para favorecer e estimular a criatividade fraternal entre as pessoas. Em vez de investir em máquinas de guerra, como quer fazer a União Europeia para escamotear os disparates que tem vindo a fazer para seguir a liderança imperial, investir em redes integradas de protecção civil, incluindo componentes de defesa contra ataques militares, com base no desenvolvimento de formas de empatia para com as vítimas da pobreza e da opressão, nomeadamente os militares usados para servir os impérios concorrentes, independentemente da nacionalidade e do local de residência.
INÍCIO: Por um futuro feliz
Referências:
AAVV. (2020). Intersectional feminism: what it means and why it matters right now. UN Women.
Agamben, G. (2004). O estado de excepção. Boitempo Editorial.
Akkerman, M. (2019). The Business of Building Walls. TNI, The Transnational Institute.
Alberoni, F. (1989). Génese. Bertrand. http://www.alberoni.it/libri-pdf/genesis.pdf
Amaral, D. F. do. (2003). Do 11 de Setembro à crise do Iraque. Bertrand.
Crenshaw, K. W. (2012). From Private Violence to Mass Incarceration: Thinking Intersectionally About Women, Race, and Social Control. UCLA Law Review, 49, 1418–1472.
Dores, A. P. (2005). Os erros de Damásio. Sociologia, Problemas e Práticas, 49.
Dores, A. P. (2020). Estado Social Real. RCP edições.
El-Fattah, A. A. (2021). You Have Not Yet Been Defeated. Fitzcarraldo.
Erundina, L. (2025). Chamado para reencantar o mundo. Outras Palavras.
Fukuyama, F. (1999). O Fim da História e o Último Homem. Gradiva.
Gilmore, R. W. (2007). Golden Gulag – prisons, surplus, crisis, and opposition in globalizing California. University of California Press.
Haidt, J. (2024). The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness. Penguin Press.
Hudson, M. (2022). The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism. ISLET—Verlag.
Marcuse, H. (1991). The New Forms of Control. In One-Dimension Man ([1964], pp. 3–20). Routledge & Kegan.
Palidda, S. (2011). Racial Criminalization of Migrants in the 21st Century (S. Palidda, Ed.). Ashgate.
Piketty, T. (2013). Le capital au XXI siècle. Seuil.
Rolo, J. M. (2006). O Regresso às Armas – tendências das indústrias da defesa. Edições Cosmos.
Wilkinson, R., & Pickett, K. (2009). The Spirit Level – why more equal societies almost always do better. Penguin Books.
Woodiwiss, M. (1988). Crime, Crusades and Corruption – Prohibitions in the United States, 1900-1987. Piter Publisher.
Zuboff, S. (2019). The Age of Surveillance Capitalism. Profile Books.